"Uma preta serve? Não, traz-me antes uma loira."
O Trail Transfronteiriço de Barrancos foi novamente uma grande festa preparada pelo Ico Bossa com a ajuda do Mundo da Corrida, indiscutivelmente uma das minhas provas de eleição.
Sendo distante dos grandes centros o TTB tem menos corredores que as recentes enxurradas, atraindo destes centros apenas os apaixonados pelo trail, alguns locais curiosos e muitos espanhóis muitíssimo efusivos.
Creio que foram cerca de 170 os corredores a alinhar na distância maior (55km), sendo que destes, com cerca de 20% já teria trocado algumas palavras e cerca de metade já tinha visto noutras paragens, portanto, uma prova em família, a mais familiar até então.
Parti de Barrancos com vontade de desfrutar e gerir esforços com muito cuidado, já que não fazia ultra-trails desde Abril, tinha receio do tornozelo problemático, da recente tendinite, da falta de treino e demais restrições normais para quem leva a corrida "apenas" por divertimento.
Dando um sumário geral ao ambiente da corrida, devo dizer que foi a corrida de encontros de malta porreira, tantos que passei e que passaram por mim, todos, sem excepção, a trocarem algumas palavras, a dar ou receber conselhos, a rir de uma qualquer piada, a contar a história de como e porque estou aqui, a resmungar das picadas, dos gémeos ou dos capricórnios.
Até ao km 20 a corrida teve pouca história, muita poupança de esforço, travagem nas subidas e alguma destravagem nas descidas, alimentação quanto baste (voltarei aqui), boas sensações ritmos razoáveis. Pensava entretanto que queria fazer a prova de trás para a frente, aumentando o ritmo no final, o que obviamente resultaria numa 50k+ no limite, uma espécie de maioridade neste tipo e provas antes de partir para outros voos.
O percurso desenhado pelo Ico foi dos trilhos com mais armadilhas que participei até hoje, com verdadeiros muros, zonas muito exigentes e técnicas, e muito single track plano, elemento que se vê pouco por cá mas que me dá muito gozo percorrer.
Foi ao km 28 que sofri um primeiro alerta, quando senti uma falta de energia anormal num dos muros, no topo cambaleei ligeiramente, notado pelo Miguel que pergunta se estava tudo bem. Acho que sim, respondi, não muito confiante.
Se até então a gestão tinha sido na poupança para os últimos 10/20 km, a partir daqui a gestão passou a ser diferente. Algo se passa, portanto, abrando, ora correndo, ora caminhando. Absolutamente estranha era o descontrolo de pulsação a cada metro de desnível positivo ultrapassado. Relativamente ao resto do corpo, tudo relativamente imaculado, sem sinal dos malogrados tornozelos, sem músculos a arder, mas sem energia.
O percurso tinha duas subidas para o Castelo de Noudar às quais correspondiam dois pontos de abastecimento, um primeiro ao km 35 e outro ao km 42, quiçá em representação de duas conquistas, uma espanhola e outra portuguesa, de entre tantas que devem ter acontecido naquele local.
Na primeira ascensão foi feita em realidade "Walking Dead", a desesperar pelo abastecimento em que queria abancar por algum tempo, comigo um companheiro que viria a desistir com dores nos ligamentos, que poderiam comprometer a preparação para o voo sobre a Transgrancanaria 2016. Como previsto e mais que desejado mal cheguei ao abastecimento líquido do km 35 fora da muralha do castelo sentei-me e fiquei ali uns bons 5 minutos, entretanto bebi e comi todas as bolachas de alfarroba feitas pela Tita (maravilhosas). O meu mal é fome, pensei, mas pode ser tarde.Entretanto Chega o Joel, saudando-me com a exclamação: "Estás aqui!? Pensei que já estivesses na meta." Pois... Levantei-me e segui, era a descer, depois uma volta breve e um regresso ao Castelo. A descida, muito técnica era de feição, dado que não precisava de gastar muita energia, era quase só deslizar e aproveitar a boa condição muscular. Depois vem uma parte muito técnica de rocha escarpada e muito escorregadia, tudo bem, belo treino Abutrico. Quando entra a parte plana, junto ao rio Ardila, regressa a "brincadeira", correr 10 metros, pulsação sobe como se estivesse a fazer uma série de 100 em tartan, mas não, ía a trote, caminhava em seguida. Nesta altura a gestão de esforço já se encontrava nos limites de caminhar lento, caminhar rápido. Correr era uma loucura que fazia de
vez em quando, enquanto o Joel e um amigo se perdiam no horizonte.
Enquanto no final da parte plana aproxima-se um simpático alentejano que me acompanhou até na segunda subida ao castelo e Noudar. Comecei a subida com extrema dificuldade, sempre ofegante, sem qualquer energia, e a tal gestão de esforço rapidamente se converteu em “vou parar só um bocadinho”, o simpático alentejano, do qual não cheguei a saber o nome também parava, e seguíamos os dois novamente. Havia um ligeiro vale antes da ascensão, onde disse ao companheiro: “agora corro, porque não me custa descer, aproveito galgar uns metros mais depressa, mas ali à frente vou parar”. O rapaz não seguia, estava “sem pernas”, mas como previsto, mal o terreno inclinou, eu ía parando e rapidamente me apanhou outra vez, e seguimos os dois num ritmo miserável até ao Castelo.
Km 42, 6h, muita alegria dentro das muralhas do Castelo de Noudar, alguns amigos e familiares de corredores que chegavam, muitos beijos e abraços, muito ar desgastado de muita gente. Sentei-me no chão, tirei a mochila, perguntei se havia cerveja. Havia cerveja preta, perguntei se havia loira, e foram ver, entretanto levantei-me para recolher uma sopa que aviei num abrir e fechar de olhos, a respiração mantinha-se ofegante doía-me a cabeça. Havia loira. Enquanto a bebia tirei a t-shirt das Tartarugas e vesti a malha polar, afinal iria ficar por ali algum tempo. Fechei os olhos por um momento e encostei-me, pouca melhoria. Acabou, pensei. Mas já que estou “confortável”, deixo-me estar. Despachei outra sopa enquanto comecei a ver mais malta conhecida (estive ali cerca de uma hora). Chega a Manuela muito emocionada pela primeira ultra e muito sorridente. Então, vamos embora, devagar, diz. Não dá, digo, algo desapontado. Chega a Rita diz, levanta-te lá faltam 13 km e é a descer. Não dá. Aparece o Fernando, olha para mim algum tempo e diz: “Estás com uma cor estranha, não convém arriscar”. Foi o meu ponto final no TTB, levantei-me, não valia a pena continuar parado a ver se recuperava. Entretanto vem a Tita e pergunta: o que estás aqui a fazer? Estou a desistir.
Apanhei boleia com a Patrícia o Joel e amigos para a meta em Barrancos, saio algo mal disposto do carro, avisto a Maria ao longe que estava na “apoiada”, aproximo-me com ar desgraçado e conto-lhe o sucedido. Olha para mim e diz, não estás com boa cara, vamos ali aos Bombeiros, check rápido, índices de glicémia mínimos, tensão muito baixa, saturação de oxigénio no sangue a 25%, não admira que duas horas antes um degrau me parecesse a subida ao evereste... Um saco de açúcar e uma marmelada, pernas levantadas até os valores normalizarem, que é como dizer a glicémia duplicar e o grau e saturação subir aos 100%, o que naturalmente sucedeu algum tempo depois.
Ainda deu para regressar à meta e acompanhar a chegada daqueles que tinha deixado no km 42. Um dia depois, tudo excelente, sem dores musculares, sem dores nos pés, apenas com os inevitáveis arranhões. Nem parece que fiz uma maratona em trail, mas talvez tenha feito 30 e poucos km mais uma parte de caminhada geriátrica.
Do sucedido, há muitas interrogações para serem esclarecidas. Pode ter sido resultado da fraca alimentação, como um dos corredores com quem me cruzei me berrou na meta “tens de comer!!” ou por outras questões que talvez se tenham manifestado de forma mais modesta noutras provas e que terei de averiguar antes de nova aventura. De facto a minha fisionomia com pouca massa muscular e muito pouca reserva não é aliada de provas de longa distância, dado que tenho aceitado que os meus resultados comparativos são, de facto, muito diferentes entre provas curtas e provas longas. Contudo também já percebi que esta quebra é independente do ritmo, sendo provocada sobretudo pela duração do esforço.
Depois de uma bela dose de ensopado de borrego entre outras iguarias alentejanas, creio ter resolvido o problema no muito curto prazo. Foi, apesar de tudo, um excelente TTB, com uma primeira desistência tanto inevitável como necessária e consciente.
Boas corridas